O uso de caricaturas e charges como arma de guerra no século XIX



Hoje em dia, não raro, nos deparamos com jornais e revistas multicoloridos, sedutores, com grande quantidade de ilustrações que auxiliam o entendimento do texto e por vezes torna a leitura mero meio auxiliar, pois, na verdade, a imagem já disse tudo. Se o uso de imagens ainda é tão importante para a comunicação nos dias atuais, qual seria a sua relevância no final século XIX, onde quase 80% da população era considerada analfabeta?

A Guerra do Paraguai foi um conflito que pode ser considerado importante em diferentes aspectos. Podemos citar estratégias militares, tecnologias em armamentos, e tantos outros elementos como a propaganda. Falamos de um momento histórico em que a imprensa passava a ter tecnologia para reproduzir imagens em seus periódicos de larga escala. É sobre isso que trata a pesquisa que deu origem ao livro do historiador Edgley de Paula, "Guerra na Imprensa ou Imprensa na Guerra?" que no presente texto introduz o tema, nos convidando a observar sob a ótica iconográfica esse conflito tão marcante na construção das identidades dos povos do cone sul da América: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. 


Em meados do século XIX, a capacidade de se reproduzir imagens nos periódicos que circulavam no Brasil, particularmente na corte do Rio de Janeiro e no Paraguai, no período da guerra, passava por uma verdadeira revolução na massificação desse recurso, seja através de reprodução de fotografias pessoais (cartes de visite) e de paisagens, seja por meio da confecção livre de desenhos dos artistas, à bico de pena, que trabalhavam nas edições dos jornais existentes à época.

Nesse contexto, as publicações ilustradas, divulgadas quase que diariamente na imprensa, proliferaram, ainda mais, depois do início da Guerra do Paraguai (1864), causando forte impacto em toda a sociedade brasileira e por consequência nos homens que estavam sendo arregimentados e enviados para lutarem nas campanhas militares na região platina. 

As representações construídas, possivelmente, não teriam prosperado sem a participação das imagens que circularam na imprensa, em especial as de humor, através de charges e caricaturas. A irreverência foi a chave utilizada, tanto pelo lado brasileiro, quanto pelo paraguaio, para retratar o inimigo a ser vencido. Entretanto, por trás da crítica despudorada evidenciava-se uma gama de preconceitos existentes e que estavam sendo construídos, ressignificados e massificados entre as nações em conflito para um fim bem específico: o da guerra.

O interessante é que ao observarmos a imagem como representação do inimigo a ser derrotado observamos não apenas o discurso de quem produziu as caricaturas, mas, também de quem as viu e como as viu. 

Nesse sentido, o relato de um oficial subalterno do exército imperial, à época, chamado Dionísio Cerqueira sobre a utilização dessas ilustrações como armas de guerra faz-se revelador: 

“Para exaltar o espírito dos seus soldados, cuja valentia, obediência e abnegação dispensavam aliás estímulos. López nos mandava injuriar pela sua imprensa. (...) Às vezes, sem sabermos como, apareciam exemplares, cobertos de injúrias aos aliados, nos nossos acampamentos. De alguns sabíamos a origem: eram encontrados nos bolsos dos mortos e feridos. Os outros haviam sido deixados provavelmente pelos espiões, que não eram raros e passavam facilmente por orientais no acampamento argentino, por argentinos no oriental e por orientais ou argentinos no brasileiro.”

No Brasil, de uma maneira geral, as imagens personificaram a figura de Solano López, presidente paraguaio, como o grande causador da guerra e, por isso, passando a ideia principal que ela só poderia terminar quando da eliminação do seu causador.


"Nero do Século XIX", Charge de Angelo Agostini para o 
periódico brasileiro Vida Fluminense, publicado em 12/06/1869.
O Paraguai frequentemente era retratado como uma nação longínqua, isolada e sob o poder tirânico de um ditador, já o império e seus aliados teriam uma missão civilizadora e libertadora a cumprir, muito bem alinhado com o discurso reinante à época, do “fardo civilizatório” que as nações mais desenvolvidas teriam para com as mais “bárbaras”. Devemos lembrar que o modelo de civilização moderna e avançada, nesse período, era a Inglaterra Vitoriana com sua secular monarquia e seu potente livre comércio alargado mundialmente.

A selvageria e crueldade de López foi tema recorrente durante todo o conflito, expostas nos diferentes jornais, cito alguns ora pesquisados, como a Semana Illustrada, o Bazar Volante, A Vida Fluminense, entre outros desse tempo. 

Porém, com o passar dos anos, as resistências encontradas para vencer o inimigo e as sucessivas fugas do marechal paraguaio com seus últimos homens vai desgastando a imagem do Exército Aliado

O medo da fuga de López rumo à Europa aparece recorrente nas imagens analisadas, ora como uma ave de rapina, levando polpudos sacos de dinheiro, ora como um demônio a atiçar nosso imaginário cristão.
 
Aliás, é interessante verificar que tanto nas caricaturas brasileiras quanto nas paraguaias, os periódicos utilizavam-se de diversas associações visuais a diferentes trechos da Bíblia Cristã como “chaves” interpretativas para o público leitor. Por exemplo, são recorrentes temas como a morte, a fome, a peste, a guerra, os chamados “Cavaleiros do Apocalipse”. Vez por outra, Solano López é personificado como o próprio anticristo, nos jornais do Rio de Janeiro, acontecendo o mesmo com Dom Pedro II, quando retratado pelo lado paraguaio. O que demonstra que as decifrações de leituras eram muito próximas entre os povos... 

Certamente, o fator “tempo” influenciou nas diferentes vertentes dos editoriais dos jornais da corte carioca, o ufanista Paraguay Illustrado resistiu apenas alguns meses de 1865, o Bazar Volante, O Arlequim e a A Vida Fluminense seguiram uma linha mais crítica do conflito, enquanto a Semana Illustrada, de uma maneira geral, continuou alinhada ao discurso do governo brasileiro. 

Aliás, com o passar dos anos (e o conflito durou 5 anos), pátria e governo foram se diferenciando nos desenhos produzidos. Nas publicações brasileiras, o país passou a ser retratado como um índio ora normal, ora gigante, ou então, comumente doente ou acamado, com o imperador e ministros receitando remédios duvidosos...

Já no Paraguai, as imagens se concentraram tanto no chefe de estado brasileiro, o imperador D. Pedro II, quanto no povo brasileiro, ao ridicularizar a tropa brasileira como um exército de negros, macacos, incapazes de lutarem tão valorosamente quanto o combatente guarani.

O enterro da Tríplice Aliança (El Centinela, 9 de maio de 1867).



A atitude jocosa perante os nossos chefes militares também foi recorrente: D. Pedro II era o “Macacon”, o general Porto Alegre virava “Porto Triste”; general Osório, conhecido por “Osário”; e o Duque de Caxias “el gran jefe Macacuno”. Também foram alvo de piadas a pontaria da esquadra brasileira. Vejamos esse trecho, contido no periódico Cabichuí, em 1867:
“ El Cabichuí considerando la conveniência de llamar-se lãs casas de la Guerra por sus próprios nombres, o al menos com nombres que encierem ideas analagas a los efectos uq produzem, há acordado y decreta.
 Art 1º- Se proíbe bajo severa pena que desde hoy em adelante se llame bombardeo al que hace la escuarda brasileira: se llamará machacada si es de dia y si es de noche macaquiza.” 

Aspectos críticos da luta são retratados em charges bizarras e bem-humoradas. O Exército Brasileiro é descrito como uma tartaruga, numa clara alusão à sua demora em marchar para a guerra. Em outra charge, a tropa, totalmente negra, é derrotada por Lopez em seu sonho e D. Pedro II de joelhos pede clemência ao presidente paraguaio.


Tanto o Cabichuí quanto o El Centinela, os principais jornais paraguaios, prosseguiram no bombardeio cômico do oponente durante toda sua existência e circulação como periódico que durou até final de 1868, quando a cidade de Assunção foi conquistada pelos aliados (janeiro de 1869), tornando inviável a confecção dos jornais. 

O discurso e a desconstrução do inimigo continuaram, até o final de suas publicações, sem qualquer crítica ao governo paraguaio, mostrando o caráter despótico e controlador do governo de Solano López sobre esses importantes meios de comunicação (os mass media, da época). 

Nesse sentido, podemos diferenciar três grandes temas centrais nas produções paraguaias: nas primeiras fases da guerra que marcam a ofensiva paraguaia (1864/1865) e o contra-ataque aliado (1865/1866), as caricaturas paraguaias remetem a um exército de seres inferiores (macacos), incapazes de lutarem à altura do combatente guarani, na fase da estagnação (1866/1868), quando as tropas aliadas invadem o território Paraguai e não conseguem passar da linha fortificada de Humaitá, as tropas aliadas são descritas como lentas, inoperantes, de má pontaria, no entanto vencida Humaitá quando os aliados retomam a ofensiva (1868/1869) as imagens irão remeter ao holocausto da nação, à escravidão que o será o futuro do Paraguai. 

Interessante verificar que uma ideia que irá permear toda produção dos jornais paraguaios no decorrer do conflito será a fragilidade da aliança Brasil, Argentina e Uruguai e a sombra monarquista e escravocrata do império brasileiro. Assim, o tema guerra e toda suas possibilidades visuais, entre jogos políticos e notícias falsas de ambos os lados, as chamadas hoje de fake news, potencializaram diversas práticas sociais e representações culturais. 

Logo, na intenção de auxiliarem como motivação de combate nos esforços dos Estados Nacionais num conflito de alguns anos, sedimentaram e perduraram certas ideias-imagens no imaginário de suas populações, sendo hoje em dia, mais um dificultador da tão sonhada integração regional. 

As ilustrações veiculadas tanto nos periódicos paraguaios quanto nos da corte do Rio de Janeiro disseminaram e gravaram na memória, preconceitos até hoje perceptíveis nos países platinos. Nesse sentido, essas caricaturas e charges, esses discursos imagéticos, de certo, contribuíram para consolidar estigmas, que revestem a Guerra do Paraguai de importante atualidade. 


Referências:  

Periódicos paraguaios
Cabichuí: periódico de la guerra de la triple alianza. Edição facsimilar. Asunción: Museo del Barro. Página eletrônica: www.museodelbarro.com
El Centinela: periódico de la guerra de la triple alianza. Edição facsimilar. Asunción: Centro de Artes Visuales - Museo del Barro. Página eletrônica: www.museodelbarro.com

Periódicos brasileiros
Semana Illustrada: Biblioteca Nacional. Loc. Título PR-SOR 02334 (1-8). Período microfilmado: 16 dez 1860/19 mar 1876
Paraguay Illustrado: Biblioteca Nacional. Loc. Título PR-SOR 02153. Período microfilmado: 30 jul/26 out 1865
Bazar Volante: Biblioteca Nacional. Loc. Título PR-SOR 02148. Período microfilmado: out 1865/ dez 1866 (sucedido por: O Arlequim)
O Arlequim: Biblioteca Nacional. Loc. Título PR-SOR 02145. Período Microfilmado: 5 mai/ 29 dez 1867 (sucedido por: A Vida Fluminense)
A Vida Fluminense: Biblioteca Nacional. Loc. Título PR-SOR 02154. Período microfilmado: 4 jan 1868/ 25 dez 1875


Edgley Pereira de Paula
Graduado em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Especialista em História Militar pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Mestre em História Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Doutorando em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra

Bruno Henrique Brito Lopes
Graduado em História pela Universidade Católica de Pernambuco

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3 Comentários

  1. Muito interessante e oportuna a postagem. A propósito, vale considerar as restrições, para não dizer censura, impostas às inocentes e pedagógicas estórias em quadrinhos do escritor belga Georges Prosper Remi, mais conhecido como Hergê e seu personagem Tintim.

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  2. A tentativa de controle da mídia, desde o surgimento da imprensa (que possibilitou a massificação das informações), sempre foi e, acredito eu, será a vontade dos governos...

    Edgley PP, o autor.
    - Quer saber mais? Meu livro: "Guerra na Imprensa ou Imprensa de Guerra? A imprensa brasileira nos campos de batalha da Guerra do Paraguai."

    https://www.amazon.com.br/Guerra-Imprensa-Brasileira-Batalha-Paraguai-ebook/dp/B08T6G1Y5L

    https://www.travessa.com.br/guerra-na-imprensa-ou-imprensa-de-guerra-a-imprensa-brasileira-nos-campos-de-batalha-da-guerra-do-paraguai-1-ed-2020/artigo/b322d3b6-2744-4131-8e41-1b63943f6d29

    https://play.google.com/store/books/details/Edgley_Pereira_de_Paula_Guerra_na_Imprensa_ou_Impr?id=twMVEAAAQBAJ

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